Anthuérpia de Assunção Ramires, a terceira e a mais longeva das doze filhas de coronel Ramires, passou em seus aposentos a maior parte de sua fugaz existência. Tia a assistiu em seus últimos anos e, com vó, fazia-lhe unguentos, banhos e rezas para lhe tirar quebranto. Certa vez as acompanhei. Castigo por espiar as formas de prima por entre frestas e buracos de fechadura...
A menina era magríssima, olhos desalentados, esbugalhados, a pele pálida de veias esverdeazuladas, cabelos corrediços esbranquecidos, a voz lhe sumia entre tosses e o sangue que cuspia numa vasilha de prata. Deixei-a aturdido, com uma forma de angústia que me rodeia até hoje. Seu passar foi um acontecimento no arraial. Coronel mandou trazer ataúde da cidade todo forrado em cetim, encomendou vestido de noiva a Dona Zé, e exigiu os ofícios presididos pelo bispo em pessoa.
Preparava-me para as confissões. Apareceu-me com sua figura pálida no vestido de noiva. Creio que cheguei ao tom de sua palidez. Por um instante o coração pareceu-me não responder, suei e molhei-me todo. Ela sorriu-me um sorriso sem brilho, os olhos esbugalhados envolviam-me. Sussurrou em meus ouvidos sua voz fugidia: “não há lugar para mim em parte alguma, nem na morte”...
Deixei a igreja vertiginoso. Fiquei dias abismado. Vó recorreu às suas rezas e quebrantos. Depois de um período longo de mudez, expliquei a tia o acontecido. Tia mandou rezar missa para as almas do purgatório. Nunca mais soube o que é dormir sem sobressaltos.
De repente, voltando da caminhada matinal, resolvi sentar próximo ao lago, debaixo de uma mangueira, e acompanhar o nado descompromissado de um grupo de patos: “Enterraram-me viva”, senti aquela voz característica sussurrando em meus ouvidos. Fiquei atônito, subiu-me um calafrio, desfaleci. Acordei no pronto socorro.
Enquanto espero ser liberado, folheio o Correio de São João de Curvelo, que entre outras curiosidades informa: “durante a exumação de uma antiga filha da cidade, pertencente à família dos Ramires, notou-se que a posição do corpo não correspondia à posição original, como se o mesmo tivesse se movido”. Telefono imediatamente para tia: “A bença tia! Como é mesmo aquela oração pras almas do purgatório?”
Claudio Domingos Fernandes
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Claudio Domingos Fernandes
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Formado em Filosofia (Licenciatura), casado, dois filhos, trabalha na Secretaria de Educação de São Paulo, leciona Filosofia no Ensino Médio. Coordena Oficinas Culturais na Associação Cultural Opereta, onde ensina Italiano. É membro do conselho do Instituto de Formação Augusto Boal. É membro fundador da Associação Cultural Rastilho (A.CURA). Lançou "Vácuos Mundi" e "O Todo em Fragmentos". Facebook: Claudio Domingos Fernandes
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